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O PRESENTE
É costume entre nós presentearmos a alguém que aniversaria.
Qual o melhor presente que podemos dar a uma pessoa especial? Pessoa que convive conosco, que procura nos fazer o bem, cuida dos nossos interesses materiais, sabe de nossos compromissos espirituais e procura atender nossas necessidades?
Não imagino um presente melhor do que o nosso próprio comportamento com essa pessoa. Qualquer outro presente de características materiais, quer sejam simples ou complexos, perdem importância ao se comparar com o comportamento de quem presenteia. Mesmo porque, no dia do aniversário daquela pessoa, quando nos fazemos presentes, qualquer outra coisa que levemos nas mãos, são coisas secundárias. O importante, o prioritário, é a pessoa que está presente, mesmo que conduza algum objeto com o nome de presente, não tenho dúvidas.
Mas eis que surge o problema! A pessoa aniversariante deseja que o outro, o seu presente, seja da maneira que ela quer, sem quaisquer defeitos e com todas as virtudes que ela possa imaginar. Impossível!
Hoje é o dia propício para eu dar tal presente a uma pessoa querida. Seus parentes organizam a festa, compram um bolo, ornamentam o ambiente, e se preparam para cantar e apagar as velinhas. Tudo isso muito legal, mas quem são os presentes, quais são os presentes?
Olho para mim e não me vejo como um presente adequado ao gosto dela. Não sou do jeito que ela deseja que eu fosse. Tenho defeitos seríssimos que provocam nela as lágrimas e sentimentos de depressão. E não posso eliminar esses defeitos em mim, fazem parte da minha essência, da minha ligação com Deus. Tentei uma vez fazer isso, com uma pessoa com a qual convivia. Foi horrível, senti a minha vida robotizada, perdi o colorido da natureza, perdi a conexão com o Pai, perdi a minha alma. Não conseguia viver assim, e trouxe tudo de volta. Os comportamentos e forma de pensar que para os outros são tão fortes defeitos e que para mim é a essência da minha vida. Terminei sendo expulso da vida dessa pessoa, até de forma traumática; fui espancado, injuriado, amaldiçoado...
Fui embora da vida daquela pessoa, não mais me tornei presente. Mas não guardei mágoas ou ressentimentos. Compreendi que ela não me aceitava como presente, que meus defeitos fediam tanto quanto peixe podre. Entendi que qualquer pessoa iria sentir o mesmo fedor com esses defeitos. Aceitei a consequência de viver e morrer sozinho, de não obrigar a ninguém a viver com tal sacrifício. Tinha que fazer a lição do meu mestre, Jesus: “não fazer a ninguém aquilo que não queres que façam a ti.”
A qualquer pessoa que se aproxima de mim, encantada com minhas virtudes, procuro logo esclarecer com todos os detalhes a natureza dos meus defeitos e da impossibilidade de me livrar deles, pois faz parte da minha essência. Procuro evitar assim a convivência dentro de uma ilusão. Mas, ainda existe alguém que, contra tudo e contra todos, procura construir essa convivência, sabendo de quantas outras pessoas sofreram do mesmo mal e que não resistiram com o tempo a convivência comigo.
Hoje é um dia destes... a minha companheira aniversaria e sente como nunca o fedor dos meus defeitos. Corre e se refugia entre lágrimas e remédios na escuridão do seu quarto de dormir. Os parentes organizam para logo mais a noite a comemoração desse dia especial para ela, de receber os presentes. Como posso ser tal presente para esta pessoa? Se coloco acima dela o compromisso que tenho com Deus, da forma que Ele colocou em minha consciência? Se o amor que desenvolvo agora deixou de ser romântico, dirigido a qualquer mulher, mas sim espiritual, totalmente dirigido a Deus?
Quando escuto aquela canção de Gigliola Cinquetti, “Dio come te amo”, que antes associava sempre a imagem de uma mulher, hoje escuto associando integralmente a imagem de Deus, ao sentimento de Deus.
Não, reconheço, não sou um bom presente para nenhuma pessoa que deseja e sonha em ter um marido fiel, que lhe dê amor exclusivo. Não sou um marido, nunca o serei. Sou um pai, um filho, um irmão... pertenço a família universal. Sou comprometido com Deus e procuro obedecer aos caminhos que Ele coloca em minha vida, independente de sexo ou beleza, de rico ou de pobre, de letrado ou analfabeto, mas, dependente sempre do amor incondicional.
Seja minha companheira, minha irmã, trilhando comigo os caminhos do Senhor. Minha alma não deseja que exibas para mim a sensualidade do seu corpo, mas sim a solidariedade e ternura do teu coração. Talvez percebas amanhã, que o fedor que hoje sentes de mim, tenha se transformado em perfume de rosas, como aconteceu com Clara, ao ver nas chagas do moribundo Francisco, um reflexo do próprio Cristo.
Mas, por enquanto, eis-me aqui: um presente podre!
Sióstio de Lapa
Enviado por Sióstio de Lapa em 12/04/2019


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr